fbpx
Chame no Whatsapp

IA E PROPRIEDADE INTELECTUAL: DESAFIOS SOB O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Por Yuri Nabeshima

O ChatGPT tem provocado interessantes discussões jurídicas acerca dos
direitos de propriedade intelectual relacionados ao material que é produzido. Na
hipótese de determinado usuário solicitar à ferramenta a produção de um
romance, os direitos autorais sobre a obra pertencem a quem? À OpenAI, ou ao
usuário da plataforma? Há quem questione se sequer existiria um direito autoral
decorrente do material produzido neste caso.
Para entendermos melhor a problemática envolvida nesses
questionamentos, precisamos dar uns passos para trás e compreender um pouco
melhor o que é inteligência artificial.
De forma simplificada, podemos dizer que a Inteligência artificial é um
campo da ciência da computação que se dedica a criar sistemas que podem
realizar tarefas que normalmente requerem inteligência humana, como
reconhecimento de fala, identificação de objetos em imagens e tomada de
decisões. Esses sistemas usam algoritmos e modelos matemáticos para aprender a
partir de dados, em um processo chamado de aprendizado de máquina (machine
learning).

O aprendizado de máquina funciona através de algoritmos que são
alimentados com dados de treinamento. Esses dados podem ser imagens, textos,
áudios, entre outros tipos de informação. O algoritmo, então, examina esses
dados e tenta encontrar padrões e correlações entre eles. Com o treinamento, o
algoritmo se torna mais preciso e pode ser usado para classificar novos dados.
Para o aprimoramento destes sistemas de inteligência artificial, é
necessário ter uma grande quantidade de dados disponíveis. Esses dados são
usados para treinar o algoritmo e, assim, melhorar o desempenho do sistema. Em
geral, os dados utilizados para treinar sistemas de IA são obtidos de diversas
fontes, como redes sociais, sites, inputs dos usuários, entre outros.
A inteligência artificial, combinada com o poder computacional atual,
permite processar grandes quantidades de dados em tempo real, aumentando a
eficiência e produtividade em diversos setores e possibilitando a criação de
soluções para problemas complexos. No entanto, a IA também traz desvantagens,
como o risco de vieses e discriminação, além dos potenciais impactos na
propriedade intelectual.

No que diz respeito à propriedade intelectual, discute-se se a IA pode
causar violações dos direitos autorais do titular da obra quando essa for utilizada
como um “dado” que alimenta a IA. Isso ocorre porque a IA pode ser treinada a
partir de dados que contenham obras protegidas por direitos autorais, como
textos e imagens. Nesse caso, a questão é como provar que a IA usou a obra
protegida sem autorização ou ainda que o uso da obra foi feito pela IA sem gerar
uma descontextualização. A questão de prova é um desafio prático enfrentado
pelo titular dos direitos, já que a IA é capaz de aprender e processar uma grande
quantidade de dados, tornando difícil rastrear a real origem de um determinado
conteúdo (embora já existam ferramentas que prometem identificar o uso dessa
tecnologia com considerável acurácia).
Daí a importância da regulação da IA aplicada à propriedade intelectual
baseada na compreensão do mecanismo por trás do funcionamento dessa
tecnologia, de modo a confirmar a viabilidade ou não da definição de limites ao
uso das informações para “treinamento” da IA, possibilidade ou não de assegurar
ferramentas de controle e auditoria das informações “assimiladas” e consequente
responsabilização e formas de penalização das plataformas, conforme o caso.

De acordo com o direito brasileiro, são consideradas obras intelectuais
protegidas “as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em
qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”,
e é considerado autor “a pessoa física criadora de obra literária, artística ou
científica”. Assim, aplicando-se o conceito de que o autor teria necessariamente
que ser uma pessoa física, e suas obras, por sua vez, produtos elaborados a partir
da criatividade humana, poderíamos depreender da legislação vigente que a
OpenAI não poderia ser autora de qualquer obra produzida na plataforma, vez
que a inteligência artificial não é verdadeiramente “inteligente”, mas resultado de
ato autônomo de reproduções realizadas de maneira sintética. E, neste sentido,
tampouco o usuário da plataforma poderia ser considerado o autor da obra.

Outra questão relacionada aos direitos de propriedade intelectual que
enfrentamos diz respeito à base de dados utilizada pela OpenAI para produção do
material dentro da plataforma. Explica-se: caso a base de dados seja composta de
elementos que não sejam de domínio público, tendo em vista que não há expressa
referência com reconhecimento dos devidos créditos às fontes utilizadas,
supostamente o ChatGPT estaria infringindo direitos autorais de terceiros,
especialmente se caracterizada sua reprodução. De outro lado, talvez seja
possível defender que não haveria violação dos direitos autorais, baseado no art.
46 da Lei de Direitos Autorais, que prevê que “a reprodução, em quaisquer obras,
de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra
integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o
objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da
obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores“

A não violação se justificaria ainda caso o ChatGPT tenha
absorvido e assimilado o conteúdo da base de dados e passado a utilizá-lo de
forma autônoma de desvinculada das obras originais. Não obstante, existe uma
relação contratual entre OpenAi e usuário, de direito privado, regulada pelo
termo de uso da plataforma, o qual não veda expressamente o uso comercial da
obra originada da plataforma, mas deixa expresso que é responsabilidade do
usuário a sua disseminação e forma de uso, pelo que se este descumprir a
legislação local ou afetar direitos de terceiros terá assumido o risco e
consequências do seu comportamento.

A verdade é que hoje não há um arcabouço regulatório referente à
propriedade intelectual que estabeleça claramente diretrizes e normas sobre
direitos autorais decorrentes de obras produzidas por ato autônomo de
inteligência artificial. Desse modo, entendemos salutar a criação de uma previsão
legal específica para regular esta nova realidade, que não encontra (e não
encontrará) respaldo adequado na atual legislação, fruto de outros tempos.
O Projeto de Lei nº 1473/2023, de autoria do Deputado Federal Aureo
Ribeiro (Solidariedade/RJ), que versa sobre o tema, pretende tornar obrigatória a
disponibilização, por parte das empresas que operam sistemas de inteligência
artificial, de ferramentas que garantam aos autores de conteúdo na internet a
possibilidade de restringir o uso de seus materiais pelos algoritmos de
inteligência artificial, com o objetivo de preservar os direitos autorais.
Embora a intenção do projeto seja louvável no sentido de proteger a
propriedade intelectual, há dúvidas quanto a viabilidade técnica e efetividade
prática de implementar tais ferramentas.  Isto porque é possível que a IA tenha
acesso às obras objeto da restrição de outra forma, tornando a medida preventiva
por si só insuficiente para evitar uma violação de direitos autorais. Por exemplo,
uma IA pode ter acesso a obras protegidas por direitos autorais por meio de
outras fontes, como a internet, outras bases de dados que não estão sujeitas às
mesmas restrições de uso, ou inputs dos próprios usuários. Além disso, a IA pode
ser programada para ignorar restrições de uso ou contorná-las de outras maneiras,
o que pode resultar em violações de direitos autorais. Por exemplo, a IA pode ser
programada para reconhecer e contornar marcas d'água usadas para identificar
obras protegidas por direitos autorais.

Portanto, embora as medidas preventivas possam ajudar a minimizar o
risco de violação de direitos autorais, é importante lembrar que elas não são
infalíveis. Para garantir que a IA esteja operando dentro dos limites legais de
direitos autorais, é fundamental que os desenvolvedores e usuários da IA tenham
uma compreensão clara das leis de direitos autorais e outras leis de propriedade
intelectual relevantes e usem a IA com cuidado e responsabilidade.

Por fim, é importante ressaltar que a regulamentação da utilização da IA
na propriedade intelectual é uma questão complexa e em constante evolução. É
fundamental que o debate sobre esse tema seja amplo, envolvendo especialistas
em tecnologia, autores cujas obras são passíveis de proteção sob a legislação de
propriedade intelectual, representantes de plataformas de inteligência artificial e
sociedade em geral, a fim de encontrar o melhor caminho para construir a
necessária regulação da IA, permitindo um desenvolvimento responsável, ético e
sustentável da tecnologia.

 

 

Sobre o Colunista

Design sem nome (11)

Yuri Nabeshima

Head da Área de Inovação e Trabalhista no VBD Advogados; Mestre, Especialista e Graduada em Direito pela USP; Pesquisadora internacional pela University of Tokyo e na Shinshu University; Membro Efetivo da Comissão Especial de Tecnologia e Inovação da OAB/SP, Membro Efetivo da Associação Brasileira de Advogado(a)(s) em Direito Digital – ANADD, Membro Efetivo da Comissão de Inovação e Tecnologia do IBRADIM, Membro Efetivo do Membro do Comitê de M&A e Reestruturação de Empresas da CAMARB. Experiência diversa em consultoria jurídica empresarial, com enfoque em M&A e Direito Societário, Direito Contratual, Proteção de Dados, Direito Trabalhista, Compliance, e Inovação e Tecnologia.

Assine a nossa Newsleter

Fique por dentro de todas as notícias da FBT